Mil e uma palavras para conhecer antes de crescer...

sábado, 31 de março de 2012

Mistérios

Ia grande azáfama na casa da Bruxinha. Havia no meio da sala duas malas tão cheias de tralhas que fechá-las parecia tarefa impossível, mas a Bruxinha não só as fechou, num passe de magia, como as transformou em duas pequenas maletas que cabiam num bolsinho.
O Gato dormia no sofá e acorda com a passagem de uma vassoura mesmo rente aos bigodes.
- Que susto! Não tens mais nenhum lugar onde voar?
- Está a chover. – Diz a vassoura.
- Mais uma razão para me deixares dormir.
- Mantém-te acordado. Temos de nos pôr a caminho. A avó Melissa nunca nos perdoaria não estarmos lá na altura do ‘grande piquenique da primavera’.
A Bruxinha pega no gato ao colo com uma mão, agarra a vassoura com a outra e dirige-se para a porta.
- Já sabes que a minha vetusta idade não me permite voar à chuva! – diz a vassoura.
- Não te preocupes, tomamos um táxi.
- Um táxi? Eu, uma vassoura de uma longa linhagem de vassouras, a andar de táxi? Isso é contra todos os códigos de conduta das vassouras!
- Bem me parecia. Vamos?
- Que remédio. Ai, ai, para o que eu estava reservada!
- Vá, vassourinha, eu sei que tu és capaz. Daqui a pouco estamos sobre as nuvens a ver um maravilhoso sol.
Estavam quase a chegar à casa da avó da Bruxinha quando o gato se lembrou:
- E a história dos meninos? Esqueceste-te.
- Não, claro que não. Mas este mês o António Mota está a colaborar connosco.
A avó esperava-os cheia de sorrisos, beijos e abraços. E com duas chibinhas aos saltos, à volta dela. Quando as viu o Gato assustado subiu para uma Cerdeira.
- Miau! Miauuu!!! Bruxinha ajuda-me!
- Medricas! As chibinhas não fazem mal nenhum. Desce que eu agarro-te.
- Bem, eu vou tratar do jantar. – Disse a avó.
- O que é que vais cozinhar?
- Sopa de couve tronchuda e bazulaque.
- Bazulaque? Com esse nome não deve ser nada de bom.
- Eu adoro Bazulaque. – Diz o Gato.
- Mas isso és tu que és gato e até bofe frito és capaz de comer.
A avó Melissa pisca o olho ao Gato.
- Enquanto fazes o jantar, avó, vou acabar uma história. Dás-me a carta que recebeste do António Mota.
- Uma? As primas Bruxas mandaram cartas no meu aniversário. Recebi centenas delas! Estão todas aqui, ainda nem as abri.
A bruxinha ficou a olhar para um gigantesco saco de cartas.
- Não sabia que a avó tinha tantas primas! E ainda dizem que não há Bruxas. Vamos lá procurar a carta do António.
Quando a bruxinha entrou na cozinha a avó cantarolava:

“Nana, nana, avozinha
nana, nana, meu amor
nana, nana, Rosalinda
num colinho de calor.”

- Como é que sabes essa canção?
- A minha mãe cantava-a quando eu era pequenina.
- Avó, ouve o que o António Mota escreveu…

"Rosalinda

História de Sílvia Alves para o Sabe Mais k(que) os teus Pais

Uma vez, tinha eu tantos anos como os dedos da minha mão direita, acordei devagarinho, saí da cama, subi a um banquinho, espreitei pela janela do meu quarto e vi tudo forrado de neve. Havia um silêncio estranho na minha aldeia, sem pássaros a voar, sem cães a latir, sem ninguém a passar. Apenas um vento levezinho fazia mexer as camélias vermelhas de uma velha cameleira.
Eu estava sozinha em casa e tinha vontade de ir mexer na neve, fazer bolas e, se fosse capaz, um boneco maior e mais gordo que eu.
De repente, a porta da entrada abanou, e eu ouvi:
- Truz, truz.
- Quem é?
- Sou eu, abre a porta!
- Tu? mas como é possível ? – disse eu, admirada, depois de espreitar pelo buraco da enorme da velha fechadura.
Abri a porta e comecei a rir.
Estava tão engraçada a minha boneca, que tinha desaparecido de casa sem me dizer nada. Deixei de rir, e comecei a ralhar:
- Fizeste-me sofrer, Rosalinda. Procurei-te por todos os lados, chamei por ti até ficar rouca. Não voltes a sair sem me avisar, ouviste?
Quando me passou a arrelia, espantei-me:
- Estás diferente. Rosalinda!

História de Sílvia Alves para o blogue Sabe Mais k(que) os teus Pais

A minha boneca tinha o cabelo branco e a roupa era exatamente igual à cor da neve. Mas reparei nos seus olhos cansados.
- Precisas de descansar, Rosalinda! – disse eu com voz de mãe.
Com cuidado, para não a magoar, peguei nela ao colo, dei-lhe um beijo, levei-a para o meu quarto e comecei a cantar:

“Nana, nana, avozinha
nana, nana, meu amor
nana, nana, Rosalinda
num colinho de calor.”

História de Sílvia Alves para o blogue Sabe Mais k(que) os teus Pais
Cantei, embalei, voltei a cantar, tornei a embalar. E a minha boneca Rosalinda desfez-se em água.
Nunca mais tive uma manhã de neve tão mágica como esta que vos contei.

Portelas, 5 de março de 2012"

Quando a Bruxinha acabou de ler a avó Melissa tinha uma lágrima a escorrer pela sua doce cara de bruxa.
-Como é que ele sabia da história da boneca? Deve ser uma partida da minha Rosalinda.
- Da tua Rosalinda? Oh, avó, tu e as tuas histórias… Conta-me.
A avó abriu o armário dos copos e tirou de lá um pequeno baú de madeira com uma foto dentro.
- Quando eu era uma Bruxinha como tu tinha uma boneca chamada Rosalinda. Um dia desapareceu durante o ‘piquenique da primavera’ e só voltou muito tempo depois numa noite de inverno, branca como a neve que cobria a Floresta. O resto aconteceu tal e qual tu leste. Mas como é que o António Mota sabia?
- Tu contaste a uma pessoa, que contou a outra pessoa, que contou a outra…
- Não, querida, nunca contei a ninguém! São coisas de velha Bruxa, a quem interessariam? Mas também fico curiosa.
- Achas que ele também é bruxo?
- Não, miúda, mas é um escritor. E, por vezes, os escritores tanto inventam que acertam.
- Tal e qual eu te vi, há muitos anos, uma última vez, num dia de neve… Um dia hás de voltar, Rosalinda, minha boneca mágica
E a avó a cantar a canção guardou novamente, no armário, o baú com a foto.

“Nana, nana, avozinha
nana, nana, meu amor
nana, nana, Rosalinda
num colinho de calor.”

De manhã a Bruxinha acordou cedo, tomou o pequeno-almoço, e disse à avó que ia andando para a Floresta. Mal tinha chegado à clareira onde, todos os anos, se fazia o ‘grande piquenique da primavera’ começou a ouvir:

“Nana, nana, avozinha
nana, nana, meu amor
nana, nana, Rosalinda
num colinho de calor.”

- Avó?! Estás aí?
Ninguém respondeu.

A bruxinha olhou em volta e não viu ninguém, apenas uma fitinha branca caída no chão. E a voz doce ouvia-se cada vez mais sumida, cada vez mais ao longe:

“Nana, nana, avozinha
nana, nana, meu amor
nana, nana, Rosalinda
num colinho de calor.”

A Bruxinha lembrou-se do que o António Mota tinha escrito: “Nunca mais tive uma manhã de neve tão mágica como esta que vos contei.”
Aquela manhã, sem nenhuma neve serôdia em algum recanto, também estava cheia de magia. Mais tarde contou tudo à avó Melissa e ela disse baixinho:
- Minha querida neta, há coisas que nem uma Bruxinha nova, nem uma velha Bruxa sabem explicar. São mistérios do coração.

(continua)...
Texto: António Mota e Sílvia Alves
Ilustrações: Maria del Toro

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